UMA AVENTURA MUSICAL NA SAPUCAÍ
A São Clemente tem uma espécie de dever: dever de sonhar, e sonhar sempre!
E assim nossa escola se constrói em ouros e sedas,
Inventa palcos, cenários, para viver o seu sonho:
Lutar quando é fácil ceder, vencer o inimigo invencível, negar quando a regra é
vender; voar num limite improvável, tocar o inacessível chão!
( Do musical Homem de La Mancha, e da poesia de Fernando Pessoa)
GRES SÃO CLEMENTE – CARNAVAL 2012
ENREDO: UMA AVENTURA MUSICAL NA SAPUCAÍ
Na escuridão do terceiro-sinal, foco de luz no mestre-maestro, delirantemente aplaudido pela gente que vai assistir a aventura musical. Silêncio.
Prólogo: Seguindo o apito e a batuta, a orquestra no recuo do fosso ataca, e há música encantadora no ar; é quando a cortina amarelo-negra abre-se lentamente! “Gatos” (Cats) esgueiram-se na arquibancada/plateia, e vão evocando as “memórias”, refazendo a história: “ Senhoras e senhores, bem-vindos ao desfile do “ Teatro Musical Brasileiro”! E por quê apaixona-se a São Clemente pelo início doteatro musicado no Brasil? Porque, como Ela, as operetas curtas daquele tempo eram satíricas, críticas e irreverentes. E aproximavam o povão da mais fina arte! Influência francesa que gerou nos trópicos, um “u-lá-lá” prá lá da malandragem. Mais ou menos 1850. Bom humor era tudo, rapidez rimava com qualidade, e, pra quem entende, um pingo é letra: a parisiense nasceu na Lapa, e ia da quadrilha à canção, do xote à valsa, da mazurca ao tango. Só no truque da ingênua maliciosa, e o diabo que a carregue lá pra casa.
Luz em resistência. Um astro vai descendo a alegórica escadaria de luzinhas piscantes, acompanhado daquilo que secretamente nos bastidores chamamos da sua “Comissão de Frente”: Lindíssimas vedetes, em maiôs cavados com franjas de diamantes falsos e transparência sobre os seios, escoltadas por bailarinos, luxuosamente vestidos em fraques. A vida é um “Cabaret”. Ouve-se a voz do Mestre de Cerimônia: “ Ora, se os desfiles das Escolas de Samba são os maiores dos musicais de que se tem notícia, nada melhor que esta grande aventura musical clementiana falar em ritmo de samba, de como viveu e vive este grande e longevo negócio que reúne na ribalta empresários, artistas, técnicos: a tal gente do show business – nós! Avante legítimas representantes carnavalizadas desta verve, as Comissões de Frente, espetáculo à parte na Avenida, quando sobem pernas, arrancam roupas, despertam o aplauso e o inesperado acontece: é a Broadway tupiniquim! A abertura é mágica!”.
O palco/passarela abre-se, e sobe o espetacular elevador com a montanha verdejante onde “A Noviça Rebelde” rodopia, cantando para suas crianças que a “Música, é Divina Música”: “Precisa de dinheiro prá botar o bloco na rua, levantar cenários, contratar estrelas, fazer figurinos, vender bilhetes e acender a rica luz: aí o prazer do público é total, quando a bela Estrela seminua com cara de safadinha, faz biquinho e começa solfejando os acordes”.
Desce da escuridão do urdimento a magistral teia com a “Mulher Aranha”, arrebatadora Rainha e Madrinha da Companhia. Das laterais, no chão surgem as mulutas com o estonteante figurino “Sopro de Purpurina”. O primeiro setor de assentos, em suspense, puxa o fôlego, sem acreditar na tamanha opulência flutuante sobre si. Confetes prateados caem salpicados. A aracnídea está em êxtase, pendurada quase solta no espaço, e declama coquete: “Leques de plumas abanam em glória a primeira das grandes: Chiquinha Gonzaga! E o Brasil era cantado em prosa, verso e música em 1885, com um pé no caipira e outro na cidade grande. Festa de São João, conversa de botequim, prosa de malandro, vida de bairro, amor feliz. Artur Azevedo aparece logo depois, saindo através de uma cortina de gotas de vidro: adorava meter o pau (ui!) no político-social, sem jamais esquecer “pernas à mostra e seios nus...”. Igualzinho ao carnaval! Olhar bem humorado, uma forma de ver a vida: temas alegres, língua apimentada e um bububú no bobobó. Duplo sentido, para um povo cujo sexto sentido avisava que de perto ninguém é normal.
Uma parede de elásticos brilhosos é atravessada por ritmistas, quando ouve-se a sirene: - Teatro?, pergunta a “Bela”. – Musical?, devolve a “Fera”. – Sapucaí!, Exclamam os dois juntos. Entre românticos balanços de flores, o casal avança na
narrativa: “ A cena, a dança, a cantoria. Sopravam ventos de influência da Liberdade, América, numa revolução cenográfica e coreográfica. Tiraram a orquestra, botaram a banda, e o público exigia que arrancassem as meias daquelas pernas que eles queriam ver em pele. E veio a fantasia musicada na Praça Tiradentes: era hora das estrelas de primeira grandeza dando ataque e atraindo multidões, divas da pá-virada em decotes abissais e rabo de pernas raras. Fila na porta, empurra-empurra e o ingresso a tapa: todos pagavam pra ver a belíssima e talentosa Loura falsa”.
Do balcão da Casa Rosada, envolta na fumaça de gelo-seco e construído de papelão e compensado, “Evita” Perón abre os braços. E, em vez de cantar “Não Chores por Mim Argentina”, inesperadamente faz seu tributo de amor ao musical brasileiro, porque o espetáculo não pode parar ( a não ser na frente do júri), e continua dobrando a esquina: “Foi aí que o jogo avançou: girou a roleta do Cassino, porque o Brasil Pandeiro esquentava seus tamborins e fazia os dados rolarem. Todo o país queria Rosetá e em 1945 Walter Pinto mandava: “Canta Brasil”. E não é que o país resolveu investir? A maquinaria espetaculosa em efeitos de cena se tornou tão importante quanto as Estrelas. Abre e fecha, sobre e desce, acende e apaga, ou dá ou desce! Deus é brasileiro, é do limão estrangeiro fez-se uma limonada à tropicália, e o Brasil conhecia o Brasil. Deu tão certo que o mito grego Orfeu, quem diria, foi parar na favela brasileira; e a querida senhora Pigmalião armou sua barraca de feira por aqui. Com Carlos Machado o musical brasileiro alcança sucesso internacional”.
Uma gaiola espelhada é trazida pelo ciclone do “Mágico de Oz” e dentro está a menina Dorothy. Guardas com cassetetes de strass batem no pobre Homem de Lata. “Os Miseráveis” surgem pelas laterais, tentando socorrer. Parte triste da História, tentam calar os Musicais Brasileiros: “ A língua do Zé-Povinho estava afiada e fazia anedotas com a vida dos poderosos. Tudo devidamente amordaçado pela censura, que fez a cortina fechar pelos idos dos 60. Proibido proibir deu nó em pingo d’água e fez a tigresa (Sonia Braga) estrelar e deixar todo mundo de cabelo (Hair) em pé, tal a força deste libelo, que duas vezes o Brasil aclamou seduzido por tanta qualidade ideológica e musical. Acordes para os hippies. Faça humor, não faça a guerra,
nós temos um sonho: deixe o sol entrar! Foi uma Roda-Viva para os brasileiros, cuja profissão sempre foi a esperança. Como Calabar resistiram, a Gota d’água no oceano da incompreensão”.
Deitada numa lua de paetês surge “Vitor ou Vitória”. A indecifrável fala sobre gays, machões e lembranças musicadas: “Nisso jogaram gliter. Anunciada a era e Aquarius, houve o rompimento, a mudança, a fuga dos padrões e a busca do novo. Deboche de músculos másculos, pernas cabeludas, cílios postiços e saltos altos. Foi com os Dzi croquetes que devolvemos à Europa o que dela tínhamos recebido um século antes: o vigor do teatro musicado, desta feita, andrógino. Mas isso era só um lado da moeda. Faltava um pedaço, aquela marca de pegador do brasileiro, do machão que não é Mané. E a sacada da Ópera do Malandro foi fazer do Brasil um bordel, quando o homem brasileiro assumiu de vez sua vocação para o cantar, dançar e interpretar. No rodopio dos 80 e 90, do conteúdo político partimos para revisitar os mitos de nossa música popular. Ganhou o samba, que viu de novo Assis Valente, as Irmãs Batista e Elizeth Cardoso, revividas e exaltadas em grandes montagens; a música popular brasileira virou fio condutor de uma torrente de paixões”.
Todo o elenco internacional de imorredouros personagens, para sempre em nossos corações, estão em cena. Entraram Arlequins, Pierrots e Colombinas para receberem calorosos a carroça brasileira dos Saltimbancos, que fez cantar gerações seguidas de crianças, e “Sassaricando, e o Rio inventou a Marchinha...”. O flash, a emoção do sassarico, porque sem sassaricar, esta vida é o “ó”! Maria escandalosa junto com a Galinha e o Jumento, brasileiríssimos, cantam “Yes, Nós temos Bananas”. Pós modernos, falam da virada do terceiro milêni.: O Brasil e o mundo, a aldeia global fazendo prosperar abaixo da linha do Equador o que antes era reserva de Nova York, Lãs Vegas, Paris e Londres: o trânsito de diretores, produtores, autores, a festa das plateias brasileiras. O mistério extraordinário do musical: Raia equilibrava-se na pequena Loja dos Horrores; esfregávamos os olhos para saber se era verdade que a mesma Bibi que cantava o pequeno pardal Piaf, também se rasgava nas estranhas ao cantar os fados de Amália; Marília podia ser Dalva de Oliveira ou Elis, ou todas Elas por Ela; e agora José Mayer é o definitivo Violinista no Telhado.
Grande dança final, com toda a companhia executando impecavelmente a marcação coreográfica e o canto afinado do Samba-Enredo. Ciclorama da vida, mágica do Teatro, entretenimento profissional apaixonado. A fagulha que restará eterna. Milhares de microlãmpadas formam palmeiras artificiais, orgulhosas de serem simulacros. Micos leão dourados de acetato caem penduradas. “Deus lhe pague”: “Dizer que conseguimos copiar de maneira impecável as montagens estrangeiras é pouco: damos um passo à frente, vamos além da virtuose técnica, adicionamos à perfeição deles o chica-chica-boom da gente bronzeada que faz pulsar o já montado, de maneira diferenciada. Há um quê de povo renovador em nós”.
Epílogo: surge o Fantasma da Ópera voando a bordo de seu colossal lustre de cristal. Por trás da mascar misteriosa, há uma lágrima verde-amarela, de amor a esta gente incansável que monta Musicais. São os sonhadores: “Musicais são janelas para o imaginário de um povo, cuja qualidade é viver no País das Maravilhas. Que a Ópera de Paris seja a Marquês de Sapucaí e que o fantasma vague em nossas memórias, reafirmando o direito ao sonho. Mascaradas, faces de papel em desfile, é chegada a hora. Avante brincantes do mundo do carnaval musical, pois não há, no mundo dos humanos, gente parecida contigo. Vai ter fim a infinita aflição, e o mundo vai ver uma flor brotar, do impossível chão!”.
Feliz é a São Clemente, que da grandeza deste gênero faz o seu carnaval. Feliz meu samba, que sai pela vida em alegria incontida, nessa maravilha aventura musical. Revoada de graças translúcidas parte em direção ao por do sol, no infinito. O
perfil de Carmem Miranda vai beijando Renato Russo, até desaparecer no Black-out. Cai o Pano.
Fábio Ricardo
São Clemente 2012
Pesquisa: Tânia Brandão e Marcos Roza
COMENTÁRIOS: Muito interessante e uma grata surpresa a sinopse da São Clemente. O enredo sobre os musicais já é muito bom e proporciona muito material a ser abordado. O texto, apesar de ser um pouco "colcha de retalhos", vai entrelaçando histórias e personagens de uma forma encantadora e envolvente, contendo ainda uma pitada da tradicional irreverência da escola. O melhor enredo da agremiação nos últimos anos. E como nem só de boas ideias vive o Carnaval hoje em dia, a São Clemente também já estabeleceu parcerias que devem melhorar o lado financeiro da escola. O caso é que quem considera a amarela e preta "café com leite" pode se surpreender. Desfilando duas vezes seguidas no grupo Especial pela primeira vez em muitos anos, a São Clemente vem disposta e permanecer. E tomara que consiga.
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